Paciente com tuberculose ultrarresistente é curado no Hospital Regional da Lapa 12/11/2019 - 16:50

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Com 27 anos de idade Josué Melchiades da Costa descobriu que tinha tuberculose. A notícia veio sem muito conhecimento sobre o que se tratava e, como “era jovem demais e sem responsabilidade”, diz ele; não seguiu o tratamento de forma adequada. Durante o período de 13 anos em que conviveu com a bactéria, Josué viveu entre internamentos, revolta e a desistência do tratamento. Já curado, o mecânico de caminhões explica que a perseverança e a persistência são peças-chave para a cura.

Em 2006, quando soube que era portador da bactéria Mycobacterium tuberculosis, ou bacilo de Koch, Josué iniciou o tratamento confirme indicado na Unidade de Básica de Saúde de Campo Largo, município em que mora na Região Metropolitana de Curitiba. De lá foi encaminhado para o Hospital Regional São Sebastião que fica na Lapa. O local é referência no atendimento de pacientes com tuberculose no estado do Paraná.

“Eu era muito novo e quando a gente é novo não acredita que as coisas ruins vão acontecer. E aí eu não estava me importando com a doença. Então, achava que poderia fazer o tratamento e que estaria livre da doença, simples como outra doença qualquer”, comenta Costa.

Depois do primeiro período de internamento, Josué passou por fases em que permanecia no hospital, seguia bem a recomendação dos médicos em casa adequadamente, mas, em outras épocas, solicitava a alta médica por conta própria e ia embora para casa encontrar a família. Assim, oscilando o tratamento, ou mesmo por doses inadequadas de fármacos, desenvolveu a tuberculose Multirresistente, ou MDR.

Pacientes de tuberculose recebem diferentes medicamentos de maneira associada a partir de orientações do Ministério da Saúde. No início da doença do Josué, os médicos indicaram os remédios que estavam na primeira linha de abordagem. Quando a bactéria evoluiu para MDR, se tornando assim resistente para os primeiros medicamentos, o paciente passou a ser tratado com a segunda linha.

“Cheguei nesse estágio por minha culpa mesmo, não foi culpa dos remédios, não foi culpa dos médicos, foi só minha mesmo. Se fosse hoje eu não faria assim, seguiria o tratamento conforme o indicado, sem dúvida”, acrescentou Josué.

Quando informou que abandonaria o tratamento para a tuberculose MDR, os médicos, enfermeiros e funcionários do Hospital insistiram para o paciente não desistir do tratamento. “Depois de dois meses internado eu não aguentava mais. Falei para todos quando abandonei: não adianta gastar saliva comigo. Por isso eu sei, foi teimosia minha, porque eu abandonei e a doença foi se agravando”, afirmou.

Em uma das internações, a recomendação da equipe médica foi de que o Josué ficaria seis meses internado. Porém, chegando o prazo estipulado, os exames ainda mostravam que ele estava com tuberculose. “Eu falei para a médica na época, pode me dar alta, eu vim para ficar seis meses nem um dia a mais, nem um dia a menos”.

“Um dia chegou o oficial de justiça na minha casa e eu fiquei me sentindo como um bandido. Mas depois eu entendi que isso foi uma medida necessária porque eu estava colocando em risco outras pessoas”, explicou o paciente. Essa forma de internação foi resultado da mobilização de pessoas que atuavam no tratamento e perceberam que com a condição de saúde a qual Josué apresentava, era um risco para a saúde de outras pessoas porque poderia transmitir o bacilo da tuberculose multirresistente.

Depois desse tempo, mais uma vez a bactéria resistiu levando a doença para a chamada tuberculose extensivamente resistente, ou TB-XDR. Essa forma da doença atinge 30 mil pessoas em todo o mundo entre as mais de 10 milhões de infectados pela tuberculose. No Brasil são 19 pacientes que buscam a cura do bacilo na sua condição mais potente identificada até os dias atuais. No tratamento da tuberculose inicial, a chance de cura é de 95%. Com a evolução da resistência aos medicamentos, esse número reduz e na TB- XDR, caso do Josué, a chance de cura é de 25%.

INÍCIO DA CURA - Dia 26 de julho de 2017 foi o início da última etapa de tratamento do Josué. Ele chegou ao Hospital Regional São Sebastião da Lapa e conheceu o médico infectologista, Francisco Beraldi de Magalhães, que ficou responsável pelo paciente. Após uma longa conversa a decisão de abandonar o cigarro e o álcool e focar no tratamento.

“A condição de TB-XDR é rara e o bacilo é resistente a quase todos os medicamentos que possuímos. Não há nada específico para tratamento. Por isso, na situação em que estava o Josué nós precisávamos tentar algo diferente e, hoje, vemos que deu muito certo”, explicou o infectologista.

Embora o planejamento inicial fosse de apenas 20 dias, quando o médico avaliou o paciente e os resultados de exames, teve outra conversa com o Josué. “Depois de estudar o quadro do Josué, vi que precisávamos tentar uma terapia de salvação, ajustei uma nova estratégia terapêutica, com duração de pelo menos dois anos em regime de internação, e fui conversar com ele, expliquei tudo o que faríamos e ele concordou. Mas com o passar do tempo, uma vez ou outra ele pedia para ir para casa e nos mobilizávamos para levar até a casa dele todos os medicamentos necessários para uma semana, alguns dias e assim não parávamos o tratamento”, observou o profissional.

INOVAÇÃO - Ainda no início dessa nova etapa de tratamento, o infectologista se propôs a encontrar uma melhor maneira de tratar o Josué. Assim, buscou e pesquisou mais informações no mundo inteiro para ter referências e alternativas para o paciente. O Josué já estava em uso de uma medicação nova no Brasil, a bedaquilina, mas as demais medicações em uso, nas estratégias de dose necessárias, fariam com que ele precisasse permanecer internado por pelo menos 2 anos.

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“Em um dos momentos eu conversei com o Josué para mudarmos o planejamento do tratamento dele para um medicamento que havia sido usado apenas em dois pacientes com casos semelhantes de tuberculose”, comentou Francisco. De acordo com o médico, ambos os pacientes foram tratados na Itália com o mesmo medicamento (ertapeném), que ele gostaria de iniciar com o Josué, uma mulher ucraniana que se curou, e um outro paciente da Moldávia, tratou mas, infelizmente, não obteve sucesso e acabou morrendo de tuberculose.

“Essa doença é carente em relação aos medicamentos, não há uma gama muito grande ou vasta de fármacos. Mas, quando nos deparamos com casos desafiadores, como este do Josué, acredito que devemos usar o conhecimento que temos com as armas que estão disponíveis, mas com outras estratégias”, comentou o médico infectologista.

O ertapeném é uma antibiótico de amplo espectro, da classe dos carbapenêmicos, aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) em 2001, utilizado para tratamento de infecções urinárias, pneumonias e infecções intra-abdominais. Em 2016 o fármaco foi utilizado pela primeira vez para o tratamento de tuberculose por um grupo italiano.

Na situação do Josué, o médico salientou que a estratégia foi um novo plano de combinação dos medicamentos e muitas parcerias para viabilizar os remédios que estava fora da lista dos ofertados pela Sesa e Ministério da Saúde. “Fizemos um esforço conjunto para conseguir um medicamento mais potente do que estava previsto, arriscar com doses mais altas e buscar aliados e parceiros na Secretaria. Um tratamento mais eficaz com o paciente em casa é fantástico”.

O plano de tratamento foi inovador porque a equipe propôs uma combinação dos medicamentos que possibilitou ao paciente ficar internado no Hospital por seis meses e os restante do tempo, os 19 meses, em casa. A combinação incluiu a aquisição pela secretaria estadual da saúde de 895 frascos de ertapeném. Além deste, outros 12 tipos de medicamentos entre comprimidos, bolsas e ampolas foram utilizadas por Josué. Nos 27 meses de tratamento, foram mais de 3,2 mil comprimidos, 2,1 mil frascos e 245 ampolas de medicamentos. Considerando que o tratamento indicado variava as doses de cada remédio, assim como alguns via intravenosa, a combinação foi o tratamento de salvação, como indicou o médico, porque é de alto risco. Essa forma de tratamento viabilizou ao Josué reduzir o período de internamento e seguir com o tratamento em casa. Mesmo com o tratamento em curso de forma correta, os exames mostraram resultado positivo após um ano de tratamento.

Nessa etapa, o médico sugeriu uma outra abordagem: cirurgia para retirar um pedaço do pulmão. O plano foi realizado e executado por cirurgiões em Campo Largo. Na sequência, o tratamento seguiu com medicamentos via oral e intravenosa, com algumas doses maiores. Os resultados dos exames diários mostravam foi a consequência de uma série de fatores: disciplina para o tratamento longo, boa reação do organismo e perseverança, nas palavras de Josué.

“Os medicamentos que eu tomei são muito fortes e alguns deles são na veia. Então alguns dias tinham veias outros não tinham e de qualquer forma precisava aplicar o remédio. Foram dois anos e três meses de tratamento aplicando medicamento na veia todos os dias várias vezes no dia”, mencionou Josué.

O infectologista destaca que o organismo do Josué não só aceitou bem o tratamento, como também apresentou poucas sequelas. “O nosso grande medo era que o corpo não aguentasse, porque utilizamos medicamentos com alta toxicidade em doses maiores que o habitual por um tempo mais prolongado, isso poderia deixar sequelas na medula, nos rins, perda auditiva, entre outras. Mas o Josué reagiu extraordinariamente bem. A única sequela que percebemos foi a perda de um pouco da audição.”

ALTA – Após 824 dias no último tratamento, a data da liberação do Josué coincidiu com o aniversário de 92 anos do Hospital Regional São Sebastião. Para marcar os dois acontecimentos foi realizado um dia de comemoração.

A cura do paciente foi motivo de alegria para todos os funcionários do Hospital, para a família do Josué e também para a equipe médica que cuidou e o acompanhou. “É um ganho para a ciência e para nós é uma alegria imensa. E o Josué recebeu a alta no dia em que o Hospital completou 92 anos, depois de 13 anos de tratamento. Em um período anterior tivemos mais de 400 pacientes internados e as pessoas eram internadas aqui para esperar a morte e hoje vemos a raríssima cura de uma tuberculose ultrarresistente. É muito emocionante fazer parte dessa história”, observou o diretor-geral do Hospital, Miguel Arnoldo Wille.

O médico Francisco, que também é pesquisador e professor universitário, destacou que a cura do paciente foi gratificante porque foi inovador e um trabalho em conjunto. “Do ponto de vista médico científico é um caso que apresenta uma grande inovação no tratamento da tuberculose.” O médico reconhece que sem o esforço do paciente, o tratamento não seria bem sucedido. “Nós fizemos um plano, mas quem se tratou e se curou foi você, meus parabéns, Josué.”

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RELATO – No último dia como paciente do Hospital São Sebastião Josué e o médico Francisco fizeram uma conversa sobre os treze anos da vida do paciente. Na plateia estavam pacientes e funcionários do Hospital. Josué fez um relato e deixou uma mensagem para os pacientes, que assim como ele têm momentos de desânimo e vontade de desistir.

“Vocês todos, funcionários, pacientes, voluntários, fizeram parte da minha durante todos esses anos e vou levar vocês no meu coração. E para os pacientes, eu quero dizer: nenhum, nenhum hospital é bom, o atendimento pode ser excelente, como é do Hospital da Lapa, mas não é um lugar que eu quisesse ficar. Por isso eu não desejo para ninguém um tempo longo de internamento como foi o meu.
A minha cabeça mudou muito nesses treze anos. Casei, tenho filho e sei que hoje sou uma pessoa melhor. Mas foram 13 anos perdidos da minha vida. 13 anos que eu poderia ter feito algo mais. E a vida travou, travou por causa da doença. Embora eu acredite que tenha sido uma caminhada que precisava passar, repito, não desejo para ninguém. Por isso, perseverança é o que eu indico para vocês. Não desistam. Às vezes não e fácil, e falo isso com experiência, mas se hoje estou curado é porque eu perseverei, não desisti dessa última vez. Esse é um momento muito feliz na vida, para mim e para todos os que me acompanharam. Eu esperava isso há muitos anos.”

DOENÇA - A tuberculose é uma doença infecciosa e transmissível que afeta prioritariamente os pulmões, embora possa acometer outros órgãos e/ou sistemas. De acordo com informações do Ministério da Saúde, 25% da população mundial está infectada pela, mas a doença não se desenvolve. A Organização Mundial da Saúde (OMS), considera a doença como uma das 10 principais causas de morte por infecção.
O sintoma de alerta para a tuberculose é a tosse com catarro por mais de três de semanas. Também pode acontecer perda de peso, suador noturno e em estágios mais avançados da tuberculose pode ter sangramento quando a pessoa tosse.

HOSPITAL – O Hospital São Sebastião da Lapa foi fundado em 30 de outubro de 1927. Inicialmente chamado de Sanatório São Sebastião, a estrutura quase centenária chegou a atender mais de 400 pacientes internados para o tratamento da tuberculose. O local é referência no tratamento em tuberculose. Além do tratamento da tuberculose, o Hospital São Sebastião tem os serviços de clínica médica e clínica cirúrgica (urologia, ginecologia e cirurgia geral). A unidade própria está localizada no município da Lapa, distante 70 quilômetros de Curitiba. É uma das 21 unidades próprias do Estado, entre centros de especialidades e hospitais.

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